Lembranças de Dona Calú

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Lembranças de Dona Calú

Dona Calú foi cozinheira no meu bar/restaurante, em São Paulo, na década de 1980, mais precisamente, 1982.

Ela chegou-se um dia oferecendo-se para trabalhar, dizendo que cozinhava em uma pensão ali nas redondezas, mas que a pensão estava fechando e como ela tinha uma freguesia muito grande, queria saber se eu não lhe daria um emprego para que ele pudesse continuar a fazer comida para seus clientes.

Devo confessar que a princípio não me senti muito animado. Dona Calú era uma negra de mais de 80 anos, com mais ou menos 1,45m, curvada pela idade e magérrima.

Ao mesmo tempo que eu de cara passei a admirar aquela senhorinha, fiquei em dúvida sobre ela dar conta da cozinha e também se seria correto expor àquela senhora a tal trabalho.

Ela era convincente e, em alguns minutos me fez ver que devia aceitar sua proposta correndo. Assim foi e ela ficou extremamente feliz com o novo emprego.

Dona Calú era muito mais que uma cozinheira. Dona Calú foi um anjo que foi colocado em meu caminho em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Quanta coisa ela nos ensinou.

Lembro-me que fazíamos feira na Praça Charles Muller, em frente ao Pacaembu. Era perto, mas não muito e, por isso, costumávamos ir de carro. Assim que começou a trabalhar Dona Calú disse que podíamos deixar que ela passaria a fazer a feira. A custo consegui convencê-la, pelo menos, que a levaria de carro. E assim passou a ser feito, toda semana.

Ao chegar à feira Dona Calú ao invés de ir pela rua, na parte frontal das barracas, ia se esgueirando por trás e vendo todas as verduras, legumes, frutas que os feirantes consideravam que não poderiam mais serem vendidas, por um amassadinho, um quebradinho e as comprava por um preço infinitamente menor. Ao questioná-la eu ouvia:

  • Meu filho, vou usar esses tomates para molho, por que precisam estar firminhos, bonitinhos. Olhe aqui, estão bons ainda, só um pouco amassados. Se deixar aí, daqui a pouco viram lixo e ninguém aproveita.

E desse modo era feita a nossa feira e devo dizer que a comida da Dona Calú era deliciosa, aquela que chamamos de comida caseira.

Isso me trouxe à percepção que tenho hoje de não entender muito essa coisa de prazo de validade quando tantas pessoas reviram lixo para se alimentar. Concordo que não sirva para ser comercializado, mas daí a ser descartado vai um longo caminho. Falta respeito ao alimento.

Em paralelo, sabemos que no trajeto da produção à comercialização 60% de nosso alimentos se perdem, são desperdiçados e em um mundo onde 11% da população, algo em torno de 135 milhões de pessoas, passa fome, isso não pode acontecer.

Fica a lição de Dona Calú que passa longe, muito longe da proposta do imperfeito de São Paulo, por uma questão de princípios.

Se existe realmente o céu, Dona Calú deve estar no melhor lugar, fazendo a felicidade de todas com suas comidinhas deliciosas.

Obrigado Dona Calú, por todos os ensinamentos.